Um bancário aposentado do BB que passa suas tardes entregue a leituras e ao ofício de escrever ouvindo Bach, que tem paixão por xadrez, joga tênis, não assiste a TV nos tempos de Big Brother, que odeia best-sellers fabricados... O perfil, que se encaixaria num dos personagens do escritor Esdras Nascimento, é, na realidade, do próprio autor falando de si.
Escritor de 13 romances, entre eles o premiado Lição da Noite, vencedor em 1998 do prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) em sua categoria, Esdras nasceu em 1934, em Teresina, no Piauí. Segundo relata, passou infância e adolescência em Fortaleza e Natal. Viveu depois no Crato, Porto Alegre, Santa Maria, Rio e Brasília. Esteve dez anos no exterior: Amsterdã, Londres e Nova York. Hoje, vive no Rio, onde dirige uma oficina de criação literária voltada para o conto e o romance.
Antes de se dedicar exclusivamente ao trabalho de romancista, foi comerciário, professor, jornalista, tradutor, bancário e gerente de empresa financeira internacional. No Banco do Brasil, trabalhou nas agências do Crato (no Ceará), Porto Alegre e Santa Maria (no Rio Grande do Sul) e Botafogo (no Rio), além de assessor do diretor da Carteira de Colonização.
Em Brasília, deu aulas de Teoria da Comunicação nos cursos de preparação de administradores, foi editor da revista do Departamento de Seleção e Desenvolvimento do Pessoal e chefiou a divisão que coordenava concessão e controle de bolsas de estudo de mestrado no Brasil e no exterior. Na área internacional, foi subgerente e gerente-adjunto de Londres e gerente-adjunto de Nova York.
É aposentado pelo BB e recebe seu complemento da PREVI, que considera “uma instituição que serve de exemplo ao Brasil, como prova de que as parcerias entre empregados e empregadores não estão no campo das utopias. São possíveis e desejáveis, desde que as duas categorias se respeitem e trabalhem juntas pela redução das absurdas, injustas e cretinas diferenças sociais que existem no país”.
Personagens misturam-se
As semelhanças do personagem Esdras com aqueles que cria, normalmente de classe média alta, no cenário do Rio de Janeiro, ficam mais claras quando retrata a si na terceira pessoa. “Ele escreve todos os dias, na parte da tarde, ouvindo música. Bach, de preferência. Joga tênis e xadrez com regularidade. Admira os romances de Octavio de Faria e os filmes de Walter Hugo Khouri. Torce pelo Flamengo. Gosta de praia e bicicleta. Detesta reuniões sociais, eventos, passeios turísticos, restaurantes da moda, congressos e, sobretudo, papo sobre carência afetiva, ‘crescimento interior’, ‘necessidade de ocupar seu espaço’, marketing e globalização. Não costuma ver televisão. Seu grande vício é a leitura. Joyce, Faulkner, Proust, Balzac, Céline, Osman Lins, Érico Veríssimo, Cornélio Pena e Graciliano Ramos são autores que lê e relê.”
Sobre o ato de escrever conta, em entrevista sobre seu livro Minha Morte será Manchete, de 1994: “em geral, passo três, quatro anos, escrevendo um romance, ele me consome, exaure, me deixa tenso. Dias após dia batalhando no texto, tentando melhorá-lo, dando o melhor de mim, num esforço que me deixa vazio, feito uma laranja chupada, vem o momento em que, tenho certeza, esgotei minhas possibilidades, tentei todos os caminhos que se abriram, descobri atalhos, padeci sol e chuva, ventos e tempestades, e cheguei afinal à última palavra do livro. Quando chego a esse momento, uma sensação de alegria incontrolável e um desejo maluco de abraçar o mundo me dominam”.
Sua ojeriza à TV também pode ser retratada quando perguntado se escrever novelas não seria uma opção válida para o escritor brasileiro. “Se um escritor gosta de televisão e se sente à vontade na utilização desse veículo, não vejo razão para que ele se recuse a escrever novelas. Deve dar um bom dinheiro e pode até ser divertido. Igual prazer também poderá sentir um escritor hipocondríaco se tiver oportunidade de escrever bulas de remédio e ganhar dinheiro com isso. Não tenho a menor dúvida de que as bulas são lidas por um número muito maior de pessoas do que os romances. Não creio, porém, que seria uma proposta atraente, do ponto de vista artístico...”
Se a TV provoca reações irônicas, a música é uma verdadeira paixão. Sobre seu compositor predileto, Bach, declara que “ele é a única pessoa de quem confesso ter inveja. Ano após ano, como se fosse a primeira vez, ouço as suas composições, que me surpreendem sempre, e me estimulam como criador, pela perfeição formal e, sobretudo, pela emoção que transmitem. Diante da grandiosidade de Bach, eu me sinto o mais pobre e o mais humilde dos escritores que o Piauí já viu nascer”.
Vida acadêmica
Outra faceta de Esdras é a vida acadêmica, na qual concluiu doutorado em Letras de maneira inusual. “Como tese de doutorado, apresentei Variante Gotemburgo, um romance. Foi um escândalo. Para mim, parecia natural um compositor apresentar uma sinfonia como tese de doutoramento em música, um artista plástico apresentar uma tela, um diretor de cinema, um filme. Cada um na sua área. Eu achava que isso seria o óbvio. Mas a academia pensava, e continua pensando, de maneira diferente. Machado de Assis, por exemplo, teria dificuldade em ser doutor em Letras, com base nos seus contos e romances. A universidade daria preferência a um texto sobre os contos e romances de Machado de Assis. Parece piada, mas é verdade.”
As palavras de Esdras, ao se autodescrever, também revelam um pouco da fina ironia do mestre do Cosme Velho. “Ah, sim, eu gosto de jogar tênis e xadrez. Se o tênis é a minha terapia, o xadrez é a minha religião, o meu exercício espiritual. O tênis e o xadrez me ajudam a compreender o mundo, me dão consciência dos meus limites e possibilidades — e, sobretudo, me ensinam que superar a mediocridade alheia é fácil, até demais; o difícil é enfrentar a própria mediocridade, que se evidencia quando a gente está diante da tela em branco do computador, pensando na criação de grandes romances e constatando que, infelizmente, os recursos disponíveis não são tão vastos assim.”
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