|nº 111| Fevereiro 06

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Um gesto de amor

Ao encontrar poemas inéditos do marido já falecido, esquecidos por décadas em um armário, a pensionista Julieta Leite decide publicá-los no livro Poesias, Amor e Natureza, lançado no final de janeiro em São Paulo

Nascido em Rio Claro, interior de São Paulo, em 1915, Mauro Leite começou a rabiscar seus primeiros poemas aos 15 anos de idade. Porém, sempre cultivou esse hábito solitariamente, guardando a sete chaves quase tudo o que escrevia. A única vez que teve coragem de mostrar seus escritos para alguém foi no dia do noivado com Julieta, com quem passaria 57 anos casado. “Naquele dia, o Mauro me deu dez poesias. Mas nunca me disse que tinha outras guardadas e, pelos anos seguintes, não percebi que continuara escrevendo”, conta a esposa.

Para sua surpresa, quando o marido faleceu, em 2004, mais de uma centena de poemas foi encontrada dentro de um armário. Nasceu ali a idéia de um gesto de amor: a publicação da obra em livro. No final de janeiro deste ano, Julieta Leite pôde concretizar a homenagem com o lançamento de Poesias, Amor e Natureza (Editora Scortecci), na livraria Asabeça, em São Paulo. “Quando encontrei os poemas, pensei que, se continuassem na gaveta, iriam para o lixo no futuro, após a minha morte. Não podia permitir isso”, resume.

Em vida, além de poeta insuspeito, Mauro Leite foi bancário por profissão. Prestou concurso para o Banco do Brasil e tomou posse em outubro de 1945, conquistando a estabilidade financeira que permitiria seu casamento dois anos depois. Mas o bancário quase foi dentista. “Ele chegou a ingressar na faculdade de Odontologia, mas abandonou. Não era sua vocação”, revela Dona Julieta. Foi nesse curto período como universitário que o namoro teve início, apesar da diferença de oito anos entre os dois.

“Morávamos na Mooca, em São Paulo, e éramos vizinhos. A mãe dele era professora e eu freqüentava sua casa. À noite, quando todos saíam para ir ao teatro ou à ópera, fazia companhia para ela”, lembra. “Um dia, quando tinha 13 anos e o Mauro 21, me convidaram para uma viagem até a Praia Grande, São Paulo. Chegando lá, havia muitas pessoas da família dele e o banheiro ficava a maior parte do tempo ocupado. Eu fiquei no jardim esperando minha vez, o Mauro pegou um esguicho e disse que ia me dar banho ali mesmo”, diverte-se a pensionista.

A partir de então, o rapaz começou a se interessar por ela. “Ele me convidou para ir à matinê, no cinema. Disse que queria conversar e declarou seu amor por mim. A partir daquele dia, fiquei apaixonada. E ainda sou”, garante. O casamento trouxe para o casal três filhos: Hamilton, Joacir e Cláudio - o mais novo seguiu a profissão do pai e também trabalha no BB. Mas foi o mais velho que, junto com a mãe, descobriu os escritos do pai.

Julieta no lançamento do livro,
em São Paulo

“Quando o Mauro morreu, Hamilton, que mora nos Estados Unidos, veio me ajudar a arrumar as coisas. Nós abrimos um armário que ficava trancado a chave e achamos vários papéis. Meu filho passou os olhos e me mostrou, surpreso: ‘Olha quantas poesias escritas pelo papai!'. Chorei tanto de emoção e saudade que me veio o impulso de publicar tudo aquilo. Ao mesmo tempo, fiquei triste e com remorso por não ter perguntado para o Mauro, durante todos aqueles anos, sobre a existência de outros poemas guardados”, confessa Dona Julieta.

Os 140 poemas descobertos, escritos entre 1930 e 1957, versam principalmente sobre amor e natureza (daí o título escolhido para o livro). Tendo vivido até a juventude em uma pequena fazenda nos arredores de Rio Claro, antes de vir para a capital paulista, o poeta encontrou ali a inspiração que precisava. Além das poesias, foram encontradas algumas marchinhas e sambas de Carnaval. “O Mauro havia comentado comigo sobre essas músicas. Na época em que fazia Odontologia, ele tocava violão e cantava num conjunto com seus dois irmãos e alguns colegas.”


Novo livro

Aos 83 anos, Dona Julieta alimenta outros projetos literários. Agora, pretende lançar um livro sobre suas viagens e os países que conheceu. Após a aposentadoria de Mauro, em 1974, o casal passou a viajar por quase todos os continentes. Ao todo, num espaço de 15 anos, eles visitaram 28 países. Mas, ao contrário da maioria dos turistas, sempre preferiram o que Dona Julieta chama de “lugares exóticos e curiosos”, como o Nepal, o Tibete, a Turquia.

“Nas excursões, as pessoas ficavam acordadas até tarde e, no dia seguinte, pouco aproveitavam do lugar onde estavam. Eu e o Mauro, ao contrário, acordávamos bem cedo e saíamos andando por toda parte, descobrindo e conhecendo coisas fantásticas, diferentes”, afirma. “E sempre ia anotando tudo, fazendo rascunhos sobre o que via e aprendia. Recentemente, comecei a organizar essas anotações e um dos meus filhos pediu para ler. Surpreso, passou a me incentivar a publicar esses relatos”, diz.

Antes da nova empreitada, porém, o recém-publicado livro do marido exige outros cuidados. “A editora pretende expor a publicação na Bienal do Livro, aqui em São Paulo, e um jornalista fará a divulgação em todo o País. Estou acompanhando tudo isso”, completa Dona Julieta.

CARNAVAL

De tão fina e leve,
você parece uma serpentina.
Você tem o perfume da rosa
E o branco da neve...

Você é uma flor maravilhosa!

Você tem um sorriso de menina,
Uma risada alegre de cigarra
E uma voz de algazarra,
Muito fina,
Muito gritada, tão gritada
Como um chiado de carro pela estrada.

Você é uma serpentina colorida
De vermelho na boca e de preto no olhar,
Que alguém jogou, no carnaval da vida,
pra eu pegar...

(Mauro Leite)