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Questão de vocação
Desde estudante, a médica Zilda Arns percebeu, em trabalho voluntário, que muitas doenças e acidentes podiam ser evitados. À frente da Pastoral da Criança, ajudou a salvar milhares de vidas de recém-nascidos com cuidados básicos e muita dedicação
Existem pessoas que aparentemente nascem com uma irremediável vocação. É o caso de Zilda Arns Neumann, que chegou a pensar em dar aulas, mas migrou para a Medicina e, desde sempre, para o trabalho voluntário. “Desde muito jovem eu sonhava em trabalhar como missionária para poder ajudar crianças e famílias pobres a ter mais oportunidades e melhor qualidade de vida. Quando decidi ser médica, pensava em ir para lugares como as comunidades ribeirinhas da Amazônia e as favelas do Rio de Janeiro, para cuidar de crianças”, conta a doutora Zilda, 72 anos – que nasceu em 25 de agosto de 1934, em Forquilhinha, no sul de Santa Catarina, a 210 quilômetros de Florianópolis.
O trabalho como médica pediatra e sanitarista (formou-se em 1959) deu-lhe experiência. “Como estudante de Medicina, trabalhei como voluntária no hospital infantil Cezar Pernetta, em Curitiba. Atendia crianças de até um ano de idade e percebia que muitas tinham doenças ou sofriam acidentes facilmente evitáveis. Por isso, sempre dedicava tempo para conversar com as mães e ensiná-las a cuidar melhor de seus filhos.” A dedicação passou a conquistar admiradores. Tanto que, em 1980, foi convidada a coordenar uma campanha de vacinação para combater a primeira epidemia de poliomielite, tornando-se referência para o próprio Ministério da Saúde. Daí a chegar à Pastoral da Criança foi um passo.
“Em 1983”, lembra Zilda, “James Grant, na época diretor-executivo do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), propôs ao meu irmão, Dom Paulo Evaristo Arns (hoje cardeal-arcebispo emérito de São Paulo), que a Igreja Católica contribuísse para a diminuição da mortalidade infantil pela difusão do soro caseiro. Dom Paulo telefonou para mim e propôs que eu escrevesse um projeto para apresentar à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).” Estava nascendo a Pastoral. “Com o projeto aprovado, juntamente com Dom Geraldo Majela Agnello, arcebispo-primaz de São Salvador da Bahia e presidente da CNBB, que na época era arcebispo de Londrina, comecei a desenvolver a experiência-piloto da Pastoral da Criança, em Florestópolis.” Nesse município do norte do Paraná, marcado pela forte presença de bóias-frias em canaviais, os resultados apareceram rapidamente, com o número de mortes de crianças caindo de forma significativa.
No ano passado, a Pastoral acompanhou de perto 100 mil gestantes e 1,9 milhão de crianças pobres menores de seis anos. Foram, no total, 1,465 milhão de famílias acompanhadas em 42.672 comunidades, espalhadas em 4.120 municípios de todo o país. Quem faz esse trabalho é um exército de 272.373 voluntários, sendo 149.691 líderes comunitários, na grande maioria (mais de 90%) mulheres. Segundo dados da Pastoral, a mortalidade infantil nas comunidades atendidas, que estão entre as mais pobres do país, é de 15 óbitos no primeiro ano de vida para cada mil nascidos vivos, enquanto, de acordo com o Ministério da Saúde, a mortalidade infantil no Brasil foi de 22,5 mortes em 2004.
Em 2004, a doutora Zilda passou a coordenar também a Pastoral da Pessoa Idosa, criada naquele ano. São 6.500 voluntários em 276 municípios, que acompanham mensalmente mais de 36 mil idosos. Ano passado, ela foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz, ao lado de 999 mulheres em todo o mundo. A experiência da Pastoral vem sendo implementada em diversos países, principalmente na América Latina. A receita é simples e trabalhosa ao mesmo tempo: contato direto com as famílias carentes. Todos os meses, o líder comunitário visita as famílias e dá orientações sobre alimentação, desnutrição, controle de doenças, prevenção de acidentes domésticos e uso do soro caseiro. Depois dessa visita, é organizado o Dia da Celebração da Vida, quando as crianças são pesadas.
Como é comum às mulheres, além do trabalho, Zilda teve de se desdobrar para cuidar de sua própria casa. Viúva desde 1978, ela teve cinco filhos, três homens e duas mulheres. “Sempre contei com grande apoio de minha família, de meus irmãos – sou a 12ª de 13 irmãos – de meus padrinhos. Eles me ajudaram a cuidar e educar meus filhos, para que eu pudesse dar continuidade ao trabalho”, conta Zilda, que na adolescência pensou em ser professora. “Mas, com a ajuda de meu pai (Gabriel), decidi pela carreira de Medicina. Fui catequista e encontrei a minha realização |
No ano passado, a Pastoral acompanhou 100 mil gestantes e 1,9 milhão de crianças pobres menores de seis anos
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profissional como médica pediatra e sanitarista.”
A vocação para cuidar de crianças, de gente, se revela até mesmo quando ela comenta o avanço das mulheres no mundo do trabalho. “A autonomia das mulheres representa um avanço em relação à dívida que o mundo tem com elas. A participação no mercado de trabalho contribui para que elas tenham mais acesso à educação e conhecimentos sobre os seus direitos. Por outro lado, diminui o tempo disponível para estar com a família”, observa Zilda, preocupada com a qualidade da alimentação e com a participação dos homens nos cuidados com a família. “Por exemplo, percebo que as mães estão optando por alimentos de rápido preparo e, muitas vezes, com baixos valores nutritivos. Muitas mães também acabam tendo pouco tempo para amamentar. Por isso, é importante mais envolvimento dos homens na educação e alimentação dos filhos.” Mais do que ninguém, ela sabe do que está falando.
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